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Romeu Zema, homens que esperneiam, e um dilema Tostines

Governador de Minas reclama que homem “branco, heterossexual e bem-sucedido” é rotulado como carrasco nos dias de hoje

ODS 5 • Publicada em 6 de fevereiro de 2024 - 08:32 • Atualizada em 8 de fevereiro de 2024 - 09:19

Sei que vou denunciar os meus anos bem-vividos, mas quem, como eu, tem data de nascimento ainda no século XX, deve se lembrar da Tostines, primeira marca de biscoitos de pacote do Brasil. Hit nas lancheiras de milhões de crianças brasileiras ao longo das décadas, a Tostines foi pioneira em algumas outras coisas. O seu biscoito Calipso, por exemplo, além de ser xará de banda paraense, foi primeiro do segmento de cobertos de chocolate (nicho e informação que eu desconhecia), numa época em que o biscoito da vaquinha, outro clássico nacional, ainda era, no máximo, da novilha.

Leu essa? Para quem queria desenhado: ‘todo homem é um estuprador em potencial’

Piadas infames à parte, a Tostines também marcou época na publicidade, quando lançou uma campanha que indagava: “Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?”. Como quase todo slogan de sucesso da época (“o primeiro sutiã a gente nunca esquece”, “Compre batom!” , entre tantas outras), virou bordão, repetido por gerações a fio, emplacando o conceito de “dilema Tostines”.

Romeu Zema no lançamento de iniciativa para segurança no Carnaval: reclamação por homens serem rotulados como carrascos num país onde as principais vítimas da violência são mulheres, pessoas negras, homossexuais e os mais pobres (Foto: Cristiano Machado / Agência Minas Gerais - 30/01/2024)
Romeu Zema no lançamento de iniciativa para segurança no Carnaval: reclamação por homens serem rotulados como carrascos num país onde as principais vítimas da violência são mulheres, pessoas negras, homossexuais e os mais pobres (Foto: Cristiano Machado / Agência Minas Gerais – 30/01/2024)

Hoje em dia, apesar de a marca ter sido adquirida pela gigante Nestlé, vários sabores clássicos sumiram das gôndolas de supermercado e dos recreios de escola. Mas os “dilemas Tostines” continuam à toda por aí, de forma irônica, crítica ou, vai saber, como dúvida genuína mesmo. Na política, então, é uma festa. Bolsonaro e seus filhos fugiram da polícia porque têm culpa ou têm culpa porque fugiram da polícia? Usar os dados da Agência Brasileira de Investigação (Abin) para benefício próprio é um ato de corrupção ou apenas quem já é corrupto usa dados da Agência Brasileira de Investigação (Abin) para benefício próprio? Dilemas, dilemas, dilemas!

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O governador de Minas Gerais, Romeu Zema, que tem um dossiê impecável de frases infelizes e pérolas, forneceu mais material para testar a cientificidade do dilema Tostines na semana passada. Em outras ocasiões, deslizes seus já foram examinados por este paradigma. O governador de Minas desconhece Adélia Prado porque desvaloriza a cultura mineira ou desvaloriza a cultura mineira porque desconhece Adélia Prado? Resultados inconclusivos.

A última amostra veio no lançamento do “Plantão Integrado Acolhe Minas”, uma iniciativa voltada para o combate à violência de gênero durante o carnaval. Durante o evento, Zema discursou, e embora eu pudesse citar indiretamente, é melhor reproduzir a fala na íntegra.

“No Brasil, a coisa mais comum que acontece é rotular. Se alguém é homem, é branco, é heterossexual, é bem sucedido: pronto, é rotulado de carrasco.”

Perigoso, comprovadamente, é ser mulher, ou a cerimônia em que o governador fez o inacreditável discurso não existiria. Mais perigoso ainda, além disso, é não estar nas caixinhas de “branco” e “hétero”, e por isso mesmo ter muito menos chances de ter segurança no mundo, quanto mais ser “bem-sucedido”.

A História, essa com “H” maiúsculo, aprendida nas escolas e tida como “oficial”, não só vem deixando de lado pequenas e grandes histórias de gente que sofre sistematicamente sob as mãos de carrascos não coincidentemente brancos, homens, heterossexuais e bem-sucedidos- para repetir o termo de Zema, que não disse “ricos” porque “pegaria mal” – como se a fala que fez fosse aceitável ou minimamente plausível.

De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (publicado em 2023), a cada 8 minutos, uma menina ou mulher é estuprada no Brasil, dado que representa um aumento de 14,9% em relação ao levantamento do ano anterior. Já os registros de racismo no mesmo estudo tiveram uma alta de 67% em relação ao ano anterior.

Quanto às violências sofridas por pessoas não heterossexuais, bastaria dizer que o Estado não coleta informações detalhadas. Mas a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais) divulgou, na última segunda-feira, um levantamento que mostra que o Brasil assassinou 145 pessoas trans em 2023, configurando um aumento de 10% em relação a 2022. Já o Grupo Gay da Bahia (GGB) publicou um levantamento apontando que a cada 34 horas, uma pessoa LGBTQIA+ sofreu morte violenta no Brasil, que se manteve no posto de país mais homotransfóbico do mundo em 2023.

Agora pensemos: o homem ao qual Zema se refere, que não sofre nenhuma destas violências, é rotulado de carrasco por ser branco, hétero e rico… ou é carrasco exatamente por sê-lo?

A resposta é tão óbvia que nem cabe a ironia do dilema do pioneiro biscoito. Está nos dados, na vida e na ponta da língua. Agressores querem que o mundo continue como está: com a manutenção de seus privilégios históricos, indefinidamente. E a qualquer mínimo sinal de que pode haver questionamento deles, esperneiam: “ai, nos rotulam de carrascos.”

Quisera eu que ainda existisse um Tostines raiz, brasileiríssimo, fresquinho e doce que só, pra mascarar o gosto amargo de ver os donos absolutos da história se fazendo de vítimas.

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